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Doubt

Um filme de actores. E grandes actores.

Como lidar com um enorme ponto de interrogação? É a pergunta que se impõe ao primeiro visionamento de Dúvida. E todo é um filme gira à roda dessa mesma interrogação, com assaltos constantes ao coração e à mente do espectador, provocando-lhe essa mesma dúvida.

John Patrick Shanley adaptou o seu grande êxito do teatro para o cinema, com resultados óbvios. Os maneirismos da peça estão lá todos: o mesmo dramatismo e voz firme, a mesma pausa entre diálogos, quase como que existe uma marcação, que exige que o público sustenha a respiração a cada frase. Tudo isso proporcionado por um cenário assustadoramente perfeito e minuciosamente detalhado, com o peso e rigidez de um colégio católico, das salas de aula e gabinetes austeros.

O filme é recheado de incertezas, nunca existem constatações ou factos, tudo sucumbe à dúvida da Irmã Aloysius, uma freira rígida e disciplinadora. A irmã Aloysius é um dos lados do braço de ferro que se opõe ao Padre Brendan Flynn. É o conservadorismo da Igreja Católica contra a percepção da necessidade de uma mudança e da tolerância. Todo o filme acarreta mensagens subliminares, creiamos nós em teorias da conspiração ou não, há muito de crítica no argumento de John Patrick Shanley. Desde a altura da peça, que venceu o prémio Pulitzer e Tony, a dimensão social descrita faz parte de um objectivo maior de instalar a dúvida, ilusão transmitida pelo espaço histórico do argumento: em 1964, após o assassinato de John F. Kennedy.

O filme é assente em actores. É e não nos cansamos de repetir um filme de actores. E isso podia ter resultado mal. Faz-nos pensar que se não fosse o fabuloso elenco do filme, o desastre que o filme poderia ter sido. Contudo, Dúvida é deliciosamente recheada de detalhes, assentes em dilemas morais que perturbam o mais incauto dos espectadores, com pormenores como lâmpadas que fundem constantemente, gatas que apanham ratos, vendavais e trovões, como que num género de aviso que vai soando ao longo do argumento.

Meryl Streep, arriscamo-nos a dizer, tem aqui uma das prestações mais bem conseguidas de sempre e uma das melhores do Cinema. Um dos raros casos em que um desempenho encarna a personagem, com contornos assustadoramente reais, em que o actor se sobrepõe à personagem. Meryl Streep é o braço rígido, a conformista freira que aparentemente beneficia a disciplina à tolerância e ao amor. O seu desempenho é digno de um Óscar, mas quando pensamos que a Academia está em débito com Kate Winslet há tantos anos, ficamos numa eterna dúvida. Curiosamente, a personagem da irmã Aloysius é mais do que a rigidez que aparenta, há nela uma enorme consciência social, a consciência da pedofilia, a inclusão do primeiro aluno negro num rígido colégio católico, a preocupação com uma freira envelhecida e um humor curioso, mordaz até. Já Philip Seymour Hoffman opõe-se. Um padre moderno, que gosta de usar as unhas compridas, que gosta de açúcar e do Snowman. E é esse um dos grandes suportes do argumento, o confronto, o duelo de titãs, a mensagem de tolerância e confluência de laicismo e secularismo, mistura de religioso e pagão, no sentido de uma modernização da Igreja Católica.

No plano secundário, mas igualmente brilhante, surgem Amy Adams e Viola Davis. A primeira tem uma personagem carinhosa e doce, numa grande personificação de dúvida e insegurança. A segunda provou que não são precisos mais de dez minutos, para se ser nomeada para um Óscar. Ambas dão consistência ao filme, que tende a dar atenção excessiva às personagens da Irmã Aloysius e do Padre Flynn. Ambas são o contrapeso da dúvida e da certeza, da insegurança e da resignação, dos ideais e da esperança.

Só assim se explica o facto de todo o elenco principal de Dúvida estar nomeado para os Óscares. É um grande filme de actores e para actores, como se viu quando Meryl Streep ganhou o SAG de Melhor Actriz. É a união perfeita de actores e personagens distintos, mas que espalham a dúvida, a incerteza no espectador, o preconceito e o perdão, a misericórdia e a culpa. É o argumento que espelha tudo isso, que invade o espectador e que se torna maior que o dilema moral.

Já os planos enviezados e oblíquos, parecem excessivamente desnecessários, numa alusão ao realizador Carol Reed, que venceu o Óscar em 1968 pelo musical Oliver!. Parece-nos que se contrapõe demasiado à rigidez e aos planos obtusos. Obtuso a nível mental, claro está. Ficamos na incerteza se o argumento vale o Óscar, mas reconhecemos a perfeita recriação de época e o dramatismo dos cenários. E o final, por exemplo, é a conclusão daquilo que o filme vai remetendo ao longo da acção: a dúvida. Absolutamente perfeito.

Dúvida é um grande filme que, mais que um dilema moral, é suportado por grandes actores e excelentes interpretações. Uma das maiores convergências de talento que já conhecemos.

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