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Também nunca mais vi a minha mãe nova. O tempo embaciou-a, torceu-a, e observava-me sempre numa preocupação desconfiada. Julgo que na sua opinião eu era capaz das catástrofes mais atrozes. Não fiz muitas: faltava às aulas, quebrava uns vidros com a bola, não respondia se me chamavam, distraído. Suponho que o meu futuro a angustiava
- O que vai ele fazer?
ao passo que a mim não me angustiava o que quer que fosse, porque nunca iria ser crescido. Ser crescido era ter óculos, tosse, autoridade. Ler o jornal. Fumar também, mas isso fazia eu às escondidas, depois de roubar na copa uma caixa de fósforos das grandes. Como a casa era antiga a copa fervia de baratas. E saíam aranhas dos canos da banheira, cheias de patas. O meu pai chegava ao fim do dia, severo, entrincheirava-se no escritório. Livros, cachimbos. Volta e meia ia até lá espetar um cachimbo apagado na boca, daqueles curvos, à Sherlock Holmes. Tinham um cheiro esquisito. Pareciam ferver quando os chupava. Uma vez o meu pai apanhou-me naqueles manejos. Perguntou-me se eu era parvo. Disse-lhe que sim e ficou a mirar-me, embatucado. Ao contrário dos cachimbos o cheiro dele era agradável, a brilhantina e hospital. De manhã gostava de seguir-lhe os músculos das costas a moverem-se enquanto se barbeava. Andava sempre depressa, subia e descia as escadas a correr. Lia livros que não acabavam nunca. De tempos a tempos lia em voz alta para nós. Romances, versos. Achava aquilo lindo, eu achava uma chatice. Depois, de repente, comecei a achar lindo também, mas estava seguro que podia fazer melhor. E então começou o meu fadário com as prosas.
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Excerto de uma crónica de António Lobo Antunes in revista Visão
Etiquetas: Literatura
"Uma vez o meu pai apanhou-me naqueles manejos. Perguntou-me se eu era parvo. Disse-lhe que sim e ficou a mirar-me, embatucado."
xD
Gostei tanto tanto! : )
: )
Sabes, eu adoro Lobo Antunes. É com ele que eu tento aprender a escrever. :)